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Segurança e bem-estar
Educação, Justiça de gênero, Segurança e bem-estar, Poder da juventude
Como adultos, muitas vezes pensamos que brincar é perda de tempo. Brincar é para crianças, dizemos a nós mesmos. Quem tem tempo para essas bobagens?
Vivemos nossas vidas acreditando que brincar é permitido somente quando somos jovens e, à medida que envelhecemos, nos resignamos à inevitabilidade da seriedade. Brincar é, para muitos, incompatível com o mundo adulto. E isso é um erro enorme.
Nós, que trabalhamos de perto com crianças e jovens, frequentemente recorremos a jogos e dinâmicas como uma forma de quebrar o gelo. Nesses casos, sem perder o nosso olhar centrado no adulto, pensamos na brincadeira como uma forma de ajudar as pessoas a rir e relaxar, para que as coisas que realmente importa são mais facilmente compreendidas. Brincar ainda é um meio, uma transição, um tempo de inatividade.
Mas e se olharmos além dessa perspectiva limitada? E se virmos a brincadeira como um caminho para reconhecer o valor das emoções, construir conhecimento e encontrar soluções coletivas para problemas sociais?
Essa é a essência da ludopedagogia, uma ferramenta crítica e transformadora pela qual me apaixonei há quase dez anos e que sempre me acompanha em meu trabalho.
[image_caption caption=”Jovens mulheres guatemaltecas usam brincadeiras para aprender sobre migração e direitos humanos em Tapachula, Chiapas, México. © Global Fund for Children” float=””]
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Inspirado na obra de Paulo Freire Metodologia da Educação Popular, a ludopedagogia é um processo de constante construção e reinvenção. É uma abordagem baseada na intersecção de três áreas: o brincar, a descoberta e a construção coletiva do conhecimento.
Nas palavras do Coletivo Uruguaio de Ludopedagogia, La Mancha: “brincar nos permite questionar o óbvio, confrontar a verdade, desafiar o estabelecido.”
Como um processo socioeducativo de longo prazo, a ludopedagogia vê o brincar como um espaço de aprendizagem que nos permite apropriar-nos da realidade de forma criativa, para que esta realidade seja sentida, pensada, criticada e transformada coletivamente.
Como metodologia, a ludopedagogia começa (e termina) em nossos corpos. Ao transformar nossos corpos, movimentá-los de diferentes maneiras, cuidar deles e conectá-los a outros corpos, construímos sensações que nos permitem olhar a realidade com novos olhos e tentar outras possibilidades de nos relacionarmos com os outros. Nossos corpos nos permitem construir um espaço emocional e de cuidado.
Brincar com e a partir do corpo também nos permite reconhecer e estar em contato com nossos medos mais profundos (de ser ridicularizado, de falhar, de ser observado) e, ao mesmo tempo, nos convida a tentar superar esses medos.
Brincar nos permite tocar, imaginar, testar, experimentar, conhecer, desobedecer, transformar e criar novas linguagens a partir da felicidade, do prazer e da arte. Brincando, transformamos o mundo e também nos transformamos.
No entanto, na minha experiência, jogos – que geralmente enfatizam táticas, regras e objetivos – são frequentemente priorizados em relação ao jogo, que é mais aberto e exploratório. Então, frequentemente em workshops ou treinamentos, você apenas se diverte ou compete para ganhar um prêmio e pronto. Aqui estão três dicas para superar esses perigos e realmente brincar para transformar:
O aprendizado não acontece no vácuo – não se trata de memorizar conceitos, ou começar de situações abstratas, longe das pessoas. Pelo contrário, o aprendizado implica entender como e de que maneiras a realidade afeta nossa vida diária.
Brincar, nesse sentido, tem uma utilidade dupla. Ele nos lembra de histórias, momentos, situações e emoções que vivenciamos e que nos são familiares: risos, memórias que nos deixam orgulhosos ou envergonhados, a sensação de como era ser criança. Ao mesmo tempo, brincar abre novas experiências sobre as quais podemos refletir e aprender.
Vamos nos apresentar, vamos nos cumprimentar, vamos nos tocar! Este deve ser o começo de qualquer espaço de jogo. Vamos jogar para reconhecer quem somos e nos reconhecer nos outros. Celebrando a diversidade e, ao mesmo tempo, encontrando espaços comuns que construam um senso de comunidade.
Ao tocar, começar a partir de uma experiência pessoal permite que as pessoas se envolvam verdadeiramente e se identifiquem com os tópicos a serem explorados. Estar totalmente presentes. Ao compartilhar nossas histórias, descobrimos que enfrentamos violência e problemas semelhantes em nossas vidas diárias e comunidades e que, juntos, podemos fazer algo para confrontar e superar esses problemas. Esse é o primeiro passo para entender o mundo. E transformá-lo.
[image_caption caption=”Meninos aprendem sobre masculinidades de gênero por meio de brincadeiras em San Cristóbal, Chiapas, México. © Global Fund for Children” float=””]
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Tocar abre um espaço e tempo diferentes, porque ao tocar, deixamos para trás nossas formas típicas de interagir e entender o mundo. Deixamos para trás o cotidiano ao entrar em uma dimensão nova e desconhecida. É por isso que devemos sempre tocar em espaços amplos, que podemos estofar com novas ideias, sons e criações.
Ao tocar, tudo deve parecer possível. É o espaço ideal para a criação: sons, ideias, objetos, personalidades. Tocar manipula e transforma a realidade.
A ruptura da lógica cotidiana tradicional é o que é conhecido como “realidade lúdica”. Cada jogador deve decidir por si mesmo se joga ou não, e até onde quer ir nessa realidade lúdica. É impossível forçar alguém a jogar. Só podemos seduzi-lo, provocá-lo, convidá-lo a se sentir desconfortável. E ter o cuidado de agradecer esse desconforto.
Na realidade lúdica, o passado, o presente e o futuro das pessoas coexistem e interagem entre si. A realidade lúdica é o espaço do caos e da incerteza e, portanto, da criação e da imaginação. Aqui estão três tipos de jogos que você pode usar para instalar essa realidade lúdica:
a) Aqueles que permitem o movimento, o dinamismo, a sensação de vertigem. Jogos que constroem uma energia coletiva propícia à invenção e ao afeto. Passe a energia, crie novos sons, aja como um animal. Abandone-se para se conectar com os outros.
b) Jogos que buscam quebrar o ridículo e a vergonha. Que nos permitem resgatar o nosso direito de falhar e perceber que somos muito mais e podemos muito mais do que pensamos ou do que a sociedade pode nos obrigar a acreditar. Aja, cante, dance, faça papel de bobo... tente algo novo para se sentir vivo.
c) Jogos de introspecção, um exercício político de memória que nos recorda quem somos e de onde viemos, e que nos convida a escrever a nossa própria história. Feche os olhos, lembre-se de sensações, invoque ancestrais… Honre sua memória viva.
[image_caption caption=”Brincando com balões com o parceiro do GFC, Jóvenes por El Cambio, em San Marcos, Guatemala. © Global Fund for Children” float=””]
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O facilitador cria ritmo entre esses jogos para que as sensações sejam genuínas e espontâneas e a energia esteja no lugar certo. Mais importante, o facilitador acompanha os participantes para que eles se sintam seguros, reconhecendo sua bravura e lembrando-os de que não estão sozinhos.
Como facilitadores, devemos fazer todo o possível para tornar este laboratório de brincar o mais extenso possível, e para garantir que o brincar comece a ganhar espaço na vida cotidiana. Deixando de lado os deveres de casa e as tarefas diárias, encorajando novos encontros, lembrando os participantes que brincar é um ato político de reinvenção do mundo.
Após mergulharmos na realidade lúdica, devemos dar um passo para trás e refletir sobre o que aconteceu. Recomendo dois tipos de avaliação para facilitadores:
A avaliação “quente”, na qual os jogos e propostas são reconstruídos, recuperando todas as emoções, reflexões e ideias que surgiram. O objetivo principal é construir uma memória de grupo onde medos, nervos, risos, tensões e alegrias se traduzam em um olhar crítico sobre a realidade que nos desafia no individual e no coletivo. A pergunta que deve sempre nortear essa avaliação é: O que você notou? Dessa forma, o brincar se conecta com a realidade.
Poucos dias após o workshop, os facilitadores também devem se reunir para compartilhar suas impressões sobre a energia do grupo que foi gerada e as possíveis oportunidades de melhoria. Isso é chamado de avaliação estratégica.
Refletimos pessoal e coletivamente sobre nosso papel, como o vivemos, o que queremos melhorar, como gerar sinergia na equipe e como identificar possibilidades e próximos passos. Identificamos nossos erros, não para julgá-los, mas para aprender com eles e aumentar nosso comprometimento com a mudança social.
O mais importante é ousar brincar, perder o medo. Convidar a brincar, brincando. E sou grata todos os dias que os parceiros do GFC, mesmo trabalhando em contextos cheios de violência, injustiça e desigualdade, ousem usar o brincar como uma ferramenta para a transformação social e para a recuperação e reinvenção da nossa humanidade coletiva.
E você?…
Você quer jogar?